Pe. José Antônio de Oliveira
EttyHillesun é uma jovem judia de 28 anos, mártir em
um campo de concentração nazista, em 1943. Deixou em seu diário, enquanto
esperava a morte, uma oração profundamente impactante. Enquanto orava, dizia a
Deus:“És tu quem estás em perigo e nós
temos de te salvar”.
O monge beneditino Marcelo Barros trouxe essa reflexão
para os dias atuais, suscitando em nós uma série de questionamentos com relação
ao sentimento religioso que se expande a cada dia.
Aprendemos e cremos que Jesus nos convoca para sermos
suas testemunhas. Ora, “testemunha significa alguém que depõe a favor de outro
em um processo. Ser testemunha do reino de Deus e de Jesus significa que Deus e
o seu projeto estão sendo julgados. Deus é réu no julgamento do mundo e nós
temos de testemunhar a favor dele para salvá-lo”.
Atualmente, Deus está em alta. Proliferam por toda
parte os movimentos religiosos. E na última campanha eleitoral isso ficou muito
evidente.O lema de campanha do candidato vitorioso era: “Brasil acima de tudo;
Deus acima de todos”. Porém, o candidato não tinha o menor pudor em falar
abertamente em tortura, pena de morte, fuzilar adversários, expulsar ou prender
quem pensa ou age de forma diferente. E, mesmo com esse discurso preconceituoso
e de incitação à violência, caiu nas graças de quase metade da população, na
sua imensa maioria “cristã”. Por outro lado, por mais paradoxal que pareça, em
pesquisa do Datafolha publicada no dia 26 de outubro,60% dos eleitores ateus
diziam votar em Haddad e 27%em Bolsonaro. Os ateus rejeitaram sua postura.
Também no Congresso, a chamada“bancada da bíblia” “foi
a que mais votou contra a população”, por exemplo, na aprovação da PEC do teto
dos gastos, com o congelamento dos gastos em áreas essenciais; na PL da
terceirização, que provoca a precarização das condições de trabalho; na reforma
trabalhista e na do Ensino Médio. Ou seja, em nome de Deus, em nome da Bíblia,
usando a boa fé do povo, sobretudo os mais simples, muita gente está buscando
poder e dinheiro, em detrimento da vida, da dignidade, dos direitos
fundamentais do ser humano.
Certa vez, um jovem procurou o bispo Pedro
Casaldáliga e lhe disse: “Eu sou ateu”. O bispo lhe perguntou: “De que Deus
você é ateu?”. E é isso. Deus criou o ser humano “à sua imagem e semelhança”
(Gn 1,26) mas, como afirma Nietzsche, “o homem, em seu orgulho, criou Deus à
sua imagem e semelhança”. É preciso saber a que Deus seguimos. Se é um Deus
aquém eu sirvo, ou um deus que me serve, que se adapta às minhas ideias e
pretensões.
Marcelo Barros lembra ainda que, no século VI, o papa
Gregório afirmava que conhecia dois tipos de idolatria: a mais banal era adorar
a deuses falsos. A outra, mais sofisticada, consiste em adorar o Deus
verdadeiro de uma maneira falsa. Na própria Bíblia, vamos ver os profetas
denunciando sempre essa religião dos ‘sacerdotes’ e anunciando que Deus chama o
povo a viver a fé baseada na justiça e no cuidado da vida dos pobres. Jesus
entrou nesse mesmo caminho. Não ia ao templo oferecer sacrifícios, mas para
exercer a profecia (ensinar). Revelou aos discípulos que Deus é Pai (Abba:
paizinho) e não um Deus todo-poderoso. Pois, como diz Maria, Ele “derruba os
poderosos dos seus tronos e eleva os humildes” (Lc 1,52). Jesus mostrou que a
prioridade é o Reino de justiça, de amor e de paz. E, justamente por isso, foi
perseguido e entregue pelos religiosos da sua religião.
É o Deus de parte do Antigo Testamento que está por
trás da espiritualidade de vários grupos religiosos evangélicos e católicos. E
de algumas emissoras de rádio e televisão religiosas. O “Senhor dos exércitos”
(cf. Sl 46). Não o Deus de Jesus Cristo, o Deus Javé.
Foi esse tipo de religião que entregou Jesus à morte. Religião
das inquisições e fogueiras, das cruzadas e colonizações.Um deus que é
conivente e até abençoa a intolerância, o ódio, a vingança. Um deus que traz
prosperidade a alguns e abandona uma multidão na miséria. É preciso ter a coragem
de rejeitar essa imagem de um deus poderoso e cruel, retomar o espírito do
Evangelhoe testemunhar que Deus é Amor, quer a justiça, a solidariedade, a
comunhão. Sim, precisamos urgentemente salvar Deus.
Comentários
Postar um comentário