Dos sumos pontífices aos guardiães da tradição: as peripécias do rito romano.

Andrea Grillo

Com o motu proprio Traditionis custodes, acontecem várias coisas que podem ser compreendidas se compararmos este texto com o de 14 anos atrás, Summorum pontificum.

a) Acima de tudo, o título: o sujeito do discurso são os bispos, não os papas. E a questão é decisiva. Com o Summorum pontificum, um ato papal removia os bispos de algumas incumbências que lhes são próprias: em primeiro lugar, do exercício da autoridade sobre a liturgia nas suas dioceses. Com o Traditionis custodes, essa autoridade é devolvida aos seus legítimos detentores. Esse é um princípio eclesiológico e estrutural que o Concílio Vaticano II restabeleceu e que merece ser defendido como um bem precioso.

b) Se o sujeito episcopal é restaurado por uma “deminutio capitis”, o “tema” também é devolvido à sua plena evidência. Como diz o Traditionis custodes em seu artigo 1: “Os livros litúrgicos promulgados pelos Santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano”.

Essa afirmação suplanta radicalmente o ousado sofisma sobre o qual se baseava o Summorum pontificum: ou seja, a “covigência paralela” de duas formas rituais, uma das quais contradizia a outra. O restabelecimento de “uma única forma vigente do rito romano” é o único horizonte sobre o qual é possível construir a paz. Qualquer outra hipótese, por mais bem-intencionada que seja, cria divisões e incompreensões crescentes.

c) No Summorum pontificum, o ponto de maior ruptura com a tradição era o artigo 2, que estabelecia a “irresponsabilidade pastoral” de qualquer ministro ordenado. Ele podia optar por celebrar com a forma ordinária ou extraordinária, nas missas sem povo, sem responder a ninguém pela sua escolha. Como já era evidente há 14 anos e como pouquíssimos quiseram assinalar, esse é um princípio não de conciliação, mas de desagregação da Igreja. Hoje, com o Traditionis custodes, se Deus quiser, serão superados os sofismas e se voltará ao bom senso. Celebra-se com o rito comum a todos, salvo alguma autorização episcopal específica. Não pode existir uma concorrência original entre duas formas rituais, das quais uma nasceu para emendar a anterior.

d) O teorema abstrato que sustentava a “hipótese” do Summorum pontificum era que as duas formas rituais teriam gerado um novo equilíbrio e teriam aprendido algo uma com a outra. Não foi assim. Pelo contrário, a polarização cresceu desmedidamente, precisamente por causa do paralelismo ritual abençoado de cima. Agora, devemos reconhecer que há uma única mesa: a do rito reformado segundo as indicações do Concílio Vaticano II. A tradição do rito romano se encontra aí, não em outro lugar. E não será mais possível que escritórios inteiros de uma Congregação possam perder o seu tempo reformando uma forma do rito romano que não está mais vigente.

e) O efeito de suplantação, que o Summorum pontificum havia determinado, não era apenas o sofrido pelos bispos, mas também o sofrido pela Congregação para o Culto Divino, que se viu suplantada tanto pela Comissão Ecclesia Dei, quanto pela Congregação para a Doutrina da Fé. Agora, a competência volta aos sujeitos naturais: os bispos e a Congregação para o Culto Divino. Não há mais uma “competência separada” na “forma extraordinária” do rito romano, que não tem mais uma existência autônoma.

f) Como diz Francisco, na carta aos bispos que acompanha o Traditionis custodes, “precisamente o Concílio Vaticano II ilumina o sentido da escolha de rever a concessão permitida pelos meus antecessores”. Essa evidência é central: o rito romano, graças ao Concílio, superou aqueles limites que não podem permanecer, em paralelo, como “outra liturgia” sem determinar a presença de “outra Igreja”. Havia, nos efeitos dessas “concessões”, a possibilidade de alimentar uma Igreja que se imunizava do Concílio Vaticano II e que se contrapunha ao caminho comum. O Vetus Ordo tornou-se, também graças ao Summorum pontificum, quase o símbolo do anti-Concílio: por isso, os critérios de acesso a ele deviam ser cuidadosamente revistos. Para não gerar monstros.

O que é verdadeiramente extraordinário em todo esse caso não é tanto o restabelecimento da relação normal entre lex orandi e lex credendi, que é assegurada pelo Traditionis custodes. Parece-me extraordinário o fato de que, durante 14 anos, muitas vezes justificou-se o injustificável, muitos canonistas se curvaram ao positivismo da lei, não poucos liturgistas atacaram o burro onde o dono queria, escreveram-se artigos e até livros em que se chegava a justificar uma “dupla formação ritual” para os futuros padres, e tudo isso havia sido sustentado, endossado e às vezes instado por pastores e por supostos competentes.

Parecia que o Summorum pontificum havia se tornado, também para diversos teólogos, uma espécie de destino com o qual era preciso conviver. Foi um erro em “forma extraordinária”, que deveremos levar em conta para o futuro. Em vez disso, o papa filho do Concílio teve o bom senso e a sabedoria de dizer: agora chega. E de abrir uma fase nova, na qual a qualidade do ato ritual é jogada sobre uma única mesa, comum e ordinária, eclesial e popular.

Um pequeno e grande sinal de que a reforma conciliar não pode ser detida, nem inventando uma língua que não existe, nem exumando novamente uma forma ritual que não existe mais. A forma comum só pode ser acompanhada com cuidado e com disponibilidade, sem reservas e com as cartas à mostra, naquela “escola de oração” que são os novos ritos.

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br 

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